Rashnak
O tenebroso sorriso nos lábios de pedra da estátua foi a última coisa que Meslor viu antes de ela regressar à sua posição inicial, indicando que o seu mestre o tinha deixado. As suas palavras eram finais e as suas ordens inquestionáveis, e não havia mais nada a fazer. Apertando o cajado com todas as forças que tinha, Meslor amaldiçoou a sua sorte e desejou que não estivesse prestes a cometer um grave erro enquanto avançava num apressado paço para fora da torre do sol poente. Em direcção à mais profunda masmorra de Grur-Rak. – Ele vai ajudar. Quinze anos é muito tempo… – Mas… Ele nunca nos ajudará.! O quê?!, rugiu Meslor para si mesmo, incrédulo com a sugestão do seu Mestre. O ser a que ele se referia era um dos mais perigosos que tinha enfrentado, e um aclamado inimigo de Grur-Rak e de seu mestre. Assim que Meslor o soltasse o mais provável era destruísse metade da cidade, da mesma forma como destruíra antes de ser colocado na mais funda masmorra da cidadela. – O ser que há quinze anos fechaste nas masmorras de Grur-Rak. – Quem, meu senhor?! – Perguntou Meslor irritado com a sugestão de que ele não seria capaz de o fazer, mas muito mais curioso sobre quem o poderia “ajudar”. – Sim, espero que sim… – Respondeu a estátua de pedra com um satisfeito olhar se bem que duvidoso. Mas antes que Meslor pudesse decidir se isso era um bom sinal, o seu mestre continuou. – Para que a tua tarefa seja um sucesso, quero que empregues os dons de uma certa pessoa. – Farei tudo o que for necessário. De Grur-Rak sairá uma força capaz de conquistar o mundo. A mente de Meslor começou de imediato a planear todas as acções que pudessem entregar a seu mestre o maior exército de todos os tempos, lembrando-se de muitas das ideias que tivera nos últimos quinze anos. O seu mestre iria ficar muito surpreendido com o seu trabalho. – Durante os últimos quinze anos não toquei nas forças de Grur-Rak, e pelos meus cálculos, o seu exército é um dos maiores do mundo. Agora preciso dessa força Meslor, e preciso que ela seja invencível. – Tudo o que desejais meu senhor. – pronunciou Meslor com uma curta vénia e um orgulhoso sorriso. – Com o tempo os teus olhos voltarão a ver. – Terminou a estátua negra o assunto com um complacente gesto com a mão esquerda, esfregando o queixo com a direita enquanto considerava as próximas palavras. – Tenho uma tarefa para ti Meslor. Uma de muitas, mas uma que pode vir a fazer uma enorme diferença no nosso futuro. – Não mestre, de modo algum. Penso mesmo que poderá ser uma vantagem. – Assegurou Meslor apressadamente ao ver a dúvida nos traços de pedra de seu mestre. Ele não iria falhar! Não depois de tudo o que tinha passado. – É um mal necessário. – Os teus olhos… Vejo que tanto tempo na escuridão teve o seu preço. Espero que isso não perturbe a tua tarefa. O frio olhar de pedra percorreu Meslor como se o visse pela primeira vez, estudando com atenção o seu rosto e a serpente que se encontrava no seu cajado. – Sim mestre. Farei tudo o que for necessário. – Então suponho que não haja mesmo nada a fazer. Pela altura em que chegássemos lá seria demasiado tarde. – Meslor permitiu-se a um curto suspiro de alívio que durou bem mais do que esperara. – Temos muito trabalho pela frente Meslor, e espero que cumpras a tua parte aí em Grur-Rak. O silêncio com que a estátua respondeu pesava sobre Meslor como uma montanha, e o tempo que seu mestre demorou a responder pareceu maior que os quinze anos na prisão do Dorthul. – Oleth, meu mestre. – Onde? – Não, claro que não. Apenas não enviei a localização na mensagem porque esta se encontra demasiado longe para que possamos agir. – Respondeu Meslor ao mesmo tempo que se amaldiçoava por não ter escrito isso na mensagem. O olhar da estátua não era severo ou reprovador, mas sereno e estudioso, o que era pior. Sempre que o seu mestre punia alguém fazia-o sempre com a maior serenidade possível, o que era de esperar num ser se alimenta do sofrimento de outros. – No entanto, – Proferiu a estátua negra num lento e pesado tom que fez com que o coração de Meslor quisesse saltar do seu peito. – esperava ler na mensagem a localização… Espero que não te tenhas esquecido de a pedir… O sorriso que se desenhava na estátua negra apenas podia ser superado por aquele que reinava nos lábios de Meslor. Um elogio de seu mestre era raro e apenas era proferido quando ele estava verdadeiramente satisfeito. Meslor poucas vezes se tinha sentido tão feliz como naquele instante. – Sim. O teu mensageiro chegou ontem. Começava a temer que tivesse de avançar sem as palavras do Dorthul, mas após quinze anos elas finalmente chegaram. Fizeste o bom trabalho Meslor. Serviste-me bem. – Sim mestre, peço-vos perdão… Suponho que haveis recebido a minha mensagem? – Respondeu Meslor tentando conduzir a conversa para o tema mais útil que o seu falhanço. – Não podemos perder mais tempo Meslor, já passou demasiado. – Respondeu a enorme besta, mexendo os seus lábios como se fossem feitos de carne e não de pedra. Os massivos braços cruzavam-se sobre o seu peito, e as suas sobrancelhas fechavam-se numa reprovadora expressão que Meslor temia mais que a própria morte. – Perdoai-me mestre, – Começou Meslor enquanto rodava e desferia uma curta e graciosa vénia. – O cavalo que adquiri fugiu ao chegar aos pântanos. Tive de fazer os últimos dois dias a pé. Meslor rodou o cajado de forma a poder ver o que desconfiava, sorrindo ao ver os negros olhos que fuzilavam as suas costas. Os olhos da enorme besta de pedra. – Demoraste mais do que eu esperava… Continuando até uma das janelas, Meslor puxou o cortinado que a cobria e permitiu que o sol de final de tarde iluminasse a mesa à sua frente. Uma folha amarelada continha rabiscos que mal se conseguiam ler, e ao levantá-la Meslor provocou uma avalanche de pó que se abateu sobre a mesa e se alastrou pela atmosfera. Enquanto sacudia o pó que lhe entrava pelas narinas, uma suave voz ecoou nas suas costas. Atravessando a sala Meslor ergueu o olhar da serpente para a enorme estátua de mármore negro que crescia de um pedestal de ardósia. A estátua representava o torso de uma enorme besta com largos músculos e longos chifres, chifres que cresciam desde a sua testa até à sua nuca onde se retorciam, e chifres que cresciam dos seus ombros como extensões dos seus braços. Esses braços, tão espessos como o pescoço de um cavalo, terminavam em curtas mas aguçadas garras que pareciam capazes de rasgar a própria pedra de que eram compostos. Mas apesar de tudo isso o rosto que se contorcia numa furiosa expressão, era tão humano como o seu. A sala era dividida em dois círculos de mesas que rodeavam uma pequena área onde uma cadeira de costas altas se encontrava. Pó amarelava os livros e objectos que se encontravam sobre estas de modo a que se tornassem imperceptíveis em muitos dos casos, e era possível ver largas e espessas teias de aranha um pouco por todo o lado. Afinal a sala tinha sido invadida durante os quinze anos que estivera fora, mas se tivesse sido apenas por aranhas não havia qualquer perigo de que nada se tivesse perdido. Os passos de Ushmirr começaram a tornar-se mais claros e sem paciência para lidar com o irritante drugrak, Meslor conduziu de novo a essência e fechou a porta a trás de si. Com uma pequena palavra dezenas de velas acenderam-se um pouco por toda a sala, iluminando um espaço que Meslor mal se lembrava. Na sua memória a circular sala era mais pequena e tinha menos mesas, mas agora que voltava a pousar os seus olhos sobre esta tudo fazia muito mais sentido. Na realidade não eram os seus olhos mas os da serpente eram tão bons como os seus eram, e através deles Meslor encontrou aquilo que lhe preenchera a mente desde que saíra da prisão do Dorthul: a enorme estátua de seu mestre. A escuridão da sala era apenas quebrada pela ténue luz que furava pelos longos cortinados vermelhos sobre três altas janelas, espalhadas pela circular sala. A única parede da sala percorria mais de dez metros num meio arco, forrada por largas estantes cobertas de espessos livros, velhos pergaminhos e frascos com estranhos líquidos e objectos. Uma pequena escada de madeira subia do lado direito para um segundo andar onde se encontrava o quarto de Meslor, mas mesmo que as suas pernas implorassem pelo merecido descanso, naquele instante dormir era a ultima coisa em que pensava. Ao entrar na escura sala Meslor sentiu o peso de quinze anos a entrar pelas suas narinas. O intenso cheiro a mofo trazia-lhe uma sensação de envelhecimento, de esquecimento, mas também a agradável sensação de mistério. O pó que cobria cada centímetro da sala com um espessa camada escondia segredos que Meslor há muito se esquecera, e neles encontravam-se alguns dos seus mais astutos planos. Planos que agora tinham de ser levados a cabo e planos que esperara não serem precisos, mas sempre planos arduamente elaborados. E segredos. Quantos segredos escondia aquele pó… As arcanas palavras ordenavam a essência de Keruvien e, guiadas pela sua vontade, destrancaram a espessa porta de madeira. Esta protestou com três pesados socos na parede que a rodeava, e lentamente deslizou para dentro desta. Largando a essência Meslor avançou para a sala que se abria à sua frente, sentindo a tristeza que era perder o imenso poder de Keruvien. Largar a essência era como morrer, mas se não o fizesse poderia mesmo morrer. Conduzir a essência cansava o corpo como se este estivesse a correr o mais rápido que podia, e muito tempo a conduzir a essência poderia simplesmente parar o seu coração. Um grande poder nunca vem sem um grande preço…, pensou Meslor tristemente. – Druleo Pretora. – Pronunciou Meslor calmamente assim que deixou que a essência de Keruvien fluísse para dentro de si, sorrindo ao saborear o seu poder. O poder da vida. Imbuído na essência de Keruvien Meslor sentia que fazia parte do mundo que o rodeava, que as paredes que o rodeavam eram como membros do seu próprio corpo. Sentia as aranhas que rastejavam por estas, a humidade que deslizava pela sua superfície, o vento que rugia no exterior. Com a essência Meslor sentia o bater do mundo, e sentia que podia fazer tudo o que imaginasse. De espessa madeira de carvalho, uma porta quase tão larga como alta furava a rugosa parede à sua frente. Ornamentada com altos-relevos onde estranhas bestas rugiam de prazer e onde muitos mais seres fugiam da sua fúria, a larga porta permanecia exactamente como Meslor a deixara. Esperava que esta tivesse sido arrombada nos quinze anos que estivera fechada, mas nenhum sinal indicava que isso tivesse sido tentado. Não que isso pudesse ser feito, claro. A porta não tinha sequer uma fechadura. Subindo rapidamente a larga escadaria em espiral que subia pela cónica torre, Meslor chegou ao topo dos seus quase cinquenta de altura quando os seus pulmões estavam prestes a explodir, tendo de se apoiar sobre o cajado durante um momento antes de poder retomar o seu caminho. Pela escada atrás de si ouvia os apressados passos de Ushmirr que ainda estaria a meio da subida, e sem vontade de esperar por ele, endireitou as costas e rodou o cajado para a porta à sua frente. Percorrendo os escuros corredores que surpreendentemente ainda recordava com clareza, Meslor procurou a longa escadaria que conduzia à torre do sol poente. Na principal e mais alta torre do palácio das três luas encontravam-se os aposentos privados de Meslor, selados à quinze anos aquando a sua partida. Era o local onde durante anos tecera os seus planos e tomara todas as decisões, e naquele instante era o local mais importante de todo o mundo. Rodando sobre as frias pedras do corredor, Meslor retomou a sua apressada caminhada. Ushmirr seguiu-o rapidamente, quase correndo de forma a que as suas pequenas pernas não o deixassem ficar para trás. As seus irregulares passos ecoavam pelo corredor, fruto de uma perna coxa desde nascença. Essa era apenas mais uma das desvantagens que tinha em relação aos outros drugraks, e aquela que muito provavelmente teria ditado a sua morte. Para os drugraks um ser que não pode combater era inútil e o melhor que podiam fazer por ele era salva-lo da crueldade deste mundo, o que era uma forma poética de dizer que mais tarde ou mais cedo teriam de o matar. Se Ushmirr não se tivesse tornado num espião de Meslor, isso teria acontecido há muito. – Não te preocupes, eu agora estou aqui. – Sossegou Meslor com pequenas carícias no crispado cabelo de Ushmirr, rasgando-lhe um longo sorriso nos lábios secos e rebentados. Antes de partir, Meslor deu por si a observar novamente com espanto a resistência do pequeno drugrak ao seu feitiço. Tanto a captura de Ushmirr como os seus captores eram de esperar, e Meslor não ficou particularmente surpreendido com nenhuma das duas. Os três generais eram os comandantes máximos dos drugraks e os mais fortes em Grur-Rak, e muito antes de conseguir o trono da cidade Meslor já tinha problemas com eles. Como todos os drugraks eram orgulhosos e tinham grandes dificuldades em aceitar ordens, e raramente obedeciam sem protestar ou tentar alterar as ordens consoante a sua vontade. Se não fosse pelo medo que eles sentiam por si, o mais provável era que Meslor nunca tivesse conseguido que eles cumprissem algumas das suas ordens. A mão de Meslor apaziguou as suplicas de Ushmirr quando este começou a abraçar as suas pernas e a choramingar, algo que sempre fizera e que sempre o enervara. Era bom ter um servo pronto a fazer tudo o que lhe fosse ordenado, mas um sem dignidade pouca mais utilidade tinha que um cão de caça. Não fosse pelas suas informações, Meslor ter-se-ia livrado de Ushmirr muito antes de partir de Grur-Rak. – Os… os três generais, Mestre. – O olhar de Ushmirr brilhava de admiração, lembrando o de um pequeno cão que vê o seu dono ao final de um longo. – Eles prenderam-me quando haveis partido da cidade. Malditos porcos, filhos de uma puta! Eles roubaram a cidade Mestre! Mas não havia nada que eu podia fazer, Mestre! Por favor, Mestre, eu não podia fazer nada… – Quem? – Perguntou Meslor num dissimulado tom preocupado que acalmou toda a fúria de Ushmirr. – Foram eles… – Rugiu Ushmirr de olhos fixos no chão, cerrando os dentes como se sentisse a cicatriz a ser de novo desenhada na sua pele. – Eles prenderam-me e torturaram-me e proibiram-me de sair de lá… O pequeno drugrak passou os calejados dedos da mão esquerda pela cicatriz, e os seus olhos ganharam por momentos um doloroso brilho. Quando estes se voltaram para Meslor no entanto, ardiam com uma enorme fúria. Era impressionante como o feitiço de Meslor era capaz de vergar uma cidade mas muito pouco efeito tinha sobre ele. – Onde arranjaste essa cicatriz, Ushmirr? O magro rosto de Ushmirr mantinha os mesmos traços que Meslor recordava, com excepção de algumas rugas na testa e de uma longa e assustadora cicatriz que descia pelo lado esquerdo do rosto, unindo a sua testa ao queixo. Pelo seu aspecto tinha sido provocada por um profundo golpe e pela sua tonalidade tinha sido feita à vários anos. Meslor fitou com uma estranha alegria o sorriso que Ushmirr lhe dirigia, observando a devota felicidade com que encara os seus enfaixados olhos. Como Meslor esperara ele não tinha percebido que ele agora via o mundo pelos olhos da serpente, o que era bom. O que vemos com os olhos é apenas o que os outros nos querem mostrar, e na maior parte das vezes isso pouco interesse tem. É muito melhor ver o que ninguém quer que seja visto. – Mestre, haveis finalmente voltado! Virando para mais um escuro corredor apenas iluminado por uma alta janela do fundo deste, Meslor começou a ouvir o rítmico som de apressados passos, cada vez mais próximos. A passada irregular trouxe um sorriso aos lábios de Meslor, que ao perceber que esta crescia por detrás de uma porta do seu lado esquerdo, parou a sua marcha para esperar o seu ansioso servo. A pesada porta de madeira negra à sua frente abriu-se abruptamente para o interior e desta surgiram dois olhos escarlates numa furiosa corrida. O frios olhos da serpente encontraram de imediato os orbes do pequeno drugrak, que ao sentir o peso da sua terrífica atenção soltou um curto guincho de horror e caiu de imediato de joelhos. Esse horror, no entanto, pouco tempo durou. Ao percorrer os escuros e frios corredores do palácio, Meslor recordou-se da importância desses mesmos planos. A mensagem do Dorthul era apenas o inicio, apenas o ponto onde tudo começaria, e havia muito ainda a fazer. O plano que quinze anos antes gizara com o seu mestre dependia muito daquilo que conseguisse fazer em Grur-Rak, e para que tudo corresse como era esperado tinha ainda um longo caminho a percorrer. Durante quinze anos pensara vezes sem conta nesses mesmos planos, e finalmente chegara o momento de provar todo o seu valor. O palácio das três luas sempre tivera aquele curioso aroma, e essa era uma das razões porque Meslor gostava tanto dele. Naquele lugar a morte era uma certeza ainda maior que a noite no final do dia, e pelo ar pairava constantemente uma mistura de medo, violência e morte. Não o putrefacto cheiro de morte mas o cheiro de morte fresca, a sangue ainda quente e ao último sopro antes da escuridão. No palácio das três luas viviam seres muito mais negros que os drugraks, seres que não tinham qualquer controlo sobre os seus instintos e que a única coisa que conseguiam pensar era desmembrar a primeira coisa que lhes surgisse à frente. Seres tão perigosos que mesmo o seu mestre não permitia que eles fossem soltos no mundo, não quando eles poderiam destruir tudo aquilo porque tinham lutado com a sua sede de sangue. De ambos os lados encontravam-se duas portas mais pequenas e Meslor rapidamente se dirigiu para a que se encontrava do seu lado esquerdo. Através daquelas portas podia entrar no palácio sem ter de passar pela sala do trono, e naquele instante não podia perder tempo com as memórias que este lhe traria. Empurrando a porta de madeira negra que se encontrava entreaberta, Meslor desceu para as pedras cinzentas que cobriam o longo corredor que crescia desde a sua direita. Deixando a porta fechar-se atrás de si com um longo e intenso chiar, Meslor inspirou fundo e apenas durante alguns segundos saboreou o ar do palácio. O intenso e repugnante cheiro a morte. Meslor percorreu apressadamente a larga praça em direcção à curta escadaria que terminava em três enormes portas metálicas. A porta central era a maior e dividia-se em duas metades que se encontravam no topo de um triangulo a mais de três metros. A enorme porta dupla conduzia à sala do trono onde Meslor outrora distribuíra riqueza e ordenara punições como lhe apetecia, e onde em breve se voltaria a sentar. Mas de momento havia assuntos mais importantes a tratar, pelo que a cidade de Grur-Rak teria de esperar mais um pouco pela sua liderança. Os altos portões de barras negras encontravam-se plenamente abertos assim que Meslor chegou ao topo da estrada. Tal como nos portões da cidade não havia qualquer ser à vista, e mesmo a enorme estrutura que crescia cinquenta metros à frente parecia abandonada. Entre as pedras negras do palácio das três luas e Meslor crescia uma larga praça de ardósia, estéril e cinzenta, rodeada apenas por um pequeno parapeito com pouco mais de um metro de altura. Nenhuma planta adornava a praça, nada lhe concedia um confortável ou convidativo aroma que seria de esperar à chegada a um palácio. Apenas as frias pedras cinzentas recebiam quem o encarava, e o gelado vento que sobre elas vagueava. O mais provável era que Ushmirr tivesse sido assassinado no dia em que Meslor partira do palácio, mas pouco havia a fazer em relação a isso. A única coisa que Meslor podia fazer tinha sido feita, e apesar de parecer que colocá-lo como regente da cidade apenas pudesse enfurecer mais os drugraks, a verdade é que poderia ser a única coisa que o tivesse salvo. Os drugraks sabiam que ele regressaria um dia e sabiam que ele não ficaria nada satisfeito se Ushmirr tivesse sido morto. Os espiões são difíceis de encontrar, mesmo numa sociedade de selvagens assassinos, e Meslor sempre mostrara o gosto que tinha pelos serviços de Ushmirr. Nenhum drugrak era suficientemente estúpido para tentar desencadear a sua fúria. Mas para além de espiar e contar tudo o que se passava em Grur-Rak a Meslor, Ushmirr não tinha qualquer outra habilidade. A vida na sociedade drugrak pode ser cruel para quem não está talhado para o campo de batalha, e para grande infortúnio de Ushmirr a espada nunca pareceu seguir os seus desejos. Sem qualquer outra habilidade e com a permanente ameaça de morte, Ushmirr fez a única coisa que podia: trair a sua raça e tornar-se no cão de Meslor. Essa escolha concedeu-lhe um ardente ódio de todos os seus congéneres, mas Meslor cuidava bem dos seus súbditos. Pela traição daqueles que o tinham trazido a este mundo Meslor pagou com poder, e Ushmirr sempre fez bom uso do poder que tinha sobre aqueles que havia abandonado. Meslor questionou-se se ele ainda estaria vivo enquanto via os portões do palácio a surgirem no topo da estrada. Apoiando-se sobre o cajado Meslor forçou as suas cansadas pernas a empurrá-lo pela estrada que suavemente se ia inclinando em direcção ao palácio, ansiando já pelo descanso que neste encontraria. Quando partira de Grur-Rak em busca do Dorthul deixara um drugrak de sua confiança (se é que alguma vez um drugrak poderia ser de confiança) encarregue de gerir a cidade. Ushmirr era o seu mais fiel servo e um dos poucos que parecia conseguir resistir ao seu peculiar encanto, o que o tornava numa peça fulcral na gestão da cidade. O seu poder impedia-o de sair muitas vezes do palácio ou de conseguir ter uma conversa com um drugrak por muito tempo, e isso podia complicar imenso a liderança da cidade. Meslor precisava de alguém que pudesse comunicar as suas ordens e informá-lo do que se estava a passar, e nesse campo Ushmirr sempre fora exímio. Espiar era a sua especialidade. A cidade de Grur-Rak subia lentamente a massiva colina onde acentuava até ao palácio das três luas, assim nomeado pelas três longas torres que podiam ser vistas de qualquer ponto da cidade. Meslor nunca percebera porque eram assim chamadas, não havia nada na sua forma que se assemelhasse ao olho esquerdo de Siriath. As suas formas angulares terminavam em longas espirais que cortavam o céu como três montanhas, negras como as noites de tempestade e imperativas como a vontade de seu mestre. Talvez para os drugraks elas fossem uma lembrança de quem servissem, um eterno farol. Como uma lua na mais escura das noites. Nenhum guarda se encontrava junto aos portões ou sequer perto destes quando Meslor entrou em Grur-Rak. Enquanto avançava pelas ruas calcetadas com irregulares pedras cinzentas, o olhar da serpente era dirigido para as casas que as rodeavam com curiosidade. Em parte porque aqueles edifícios eram talvez a única coisa que não tinham mudado em quinze anos e porque lhe refrescavam a memória de gloriosos tempos, mas sobretudo pelos vultos que se escondiam no seu interior. Ocasionalmente dois orbes vermelhos espreitavam por uma persiana ou por uma porta entreaberta, recuando sempre quando viam o negro feiticeiro que avançava pelas ruas. O silêncio que reinava em Grur-Rak era tão pesado como se a cidade rugisse de excitação, e este era uma recepção suficientemente honrosa para Meslor. Passando por debaixo das muralhas da cidadela que, ao contrário das muralha exteriores, subiam por mais de vinte metros de granito com dois metros de espessura e percorriam um diâmetro de cerca de dois quilómetros. O seu duplo portão de aço enegrecido tinha mais de cinco metros de altura e cerca de meio de espessura, e para ser aberto eram precisos que mais de cinco drugraks puxassem as espessas correntes que dele pendiam. Isto não significava que os drugraks eram fracos (muito pelo contrário, eram tão fortes como qualquer homem adulto) mas antes que aquele era local onde apenas podiam entrar aqueles a quem era permitido. Ao chegar aos portões Meslor descobriu a metade esquerda convidativamente aberta. Pela altura em que Meslor chegou aos portões da muralha da cidadela, já nenhum som se ouvia em Grur-Rak. Era assustador só de pensar numa cidade com mais de cem mil habitantes em absoluto silêncio, mas isso só trazia mais prazer a Meslor. O seu silêncio era sinónimo de medo e respeito por si, e era o sinal que precisava para saber que Grur-Rak ainda lhe pertencia. Sim, sorriu Meslor, esta ainda é a minha casa. O medo era um fenómeno bastante curioso, e Meslor sempre estivera num posição privilegiada para o estudar. Os seus sintomas eram semelhantes ao de uma gripe, começando muitas vezes por um arrepio gelado e terminando na maioria das vezes em incontroláveis tremores. Como uma gripe o medo era contagioso, e quantas mais pessoas o tivessem mais poderoso era o seu efeito, mais rápido actuava e mais insuportável o seu aperto. Como uma doença a sua memória também era difícil de esquecer, e muitas das vezes mesmo as suas mazelas demoravam a desaparecer. E como muitas doenças, o medo também podia ser mortífero. No principio todas as cabeças se voltavam para as costas do drugrak, seguindo-o enquanto este serpenteava pelas tendas em direcção à cidadela, mas logo a seguir todos os rostos se questionavam de onde ele tinham vindo. E de onde ele tinha vindo, vinha Meslor. Assim que os escarlates orbes dos drugraks pousavam nos seus enfaixados olhos era como se um trovão tivesse subitamente caído sobre os seus ossos, forçando-os a tremer convulsivamente e a quebrar a força das suas pernas. Um silencioso medo invadia os seus corpos, assustando-os para a ilusória segurança das suas tendas ou casernas, calando todos os seus ânimos. Passado algum tempo apenas um suave murmúrio ecoava pelas acampamento. Meslor sorria. Seguindo os guinchos do drugrak que lentamente desapareciam pelo amontoado de tendas, Meslor fitou com atenção a sinuosa estrada à sua frente. Os apressados passos sobre a lama da estrada pareciam ter chamado a atenção de todos os drugraks no acampamento, e à sua passagem dezenas de cabeças surgiam de tendas e portas entreabertas com confusas expressões. Irritados gritos de protesto começaram a ecoar pela estrada, seguindo alarmados murmúrios e entusiasmados gritos. A maioria entusiasmados. Às vezes parecia que a mais insignificante coisa era capaz de acelerar a fúria de um drugrak. Mas quando Meslor começava a temer que o drugrak não soubesse mesmo quem ele era, este ergueu-se atabalhoadamente e disparou numa apressado corrida em direcção à cidadela. Atrás de si murmúrios de “Sim, mestre!” ecoavam pela atmosfera, carregados de horror e sofrimento. Talvez ele não soubesse quem ele era, mas certamente sabia quem ele deveria ser, e isso era suficiente por agora. Assim que retomasse o seu trono Meslor teria de relembrar aos drugraks quem governava Grur-Rak. Quem deveriam temer. O drugrak ergueu o olhar para o rosto de Meslor e por momentos este pareceu conter uns confusos traços. O drugrak tinha de saber quem ele era! Mesmo que tivessem passado quinze anos a sua memória ainda tinha de viver em Grur-Rak, o nome de Meslor ainda tinha de fazer qualquer drugrak estremecer. Depois de tudo o que Meslor fizera para dominar a horda negra não era possível que Grur-Rak o tivesse esquecido. Ninguém poderia esquecer o que Meslor fizera. Nem após um século. – Avisa o palácio de que cheguei. – Ordenou Meslor num lento e frio tom, vendo com agrado a forma como cada palavra o fazia estremecer. Um guarda drugrak saiu abruptamente de uma tenda do lado direito de Meslor. Debaixo do seu cónico elmo uma irritada expressão vincava as suas espessas sobrancelhas, e estas voltaram-se de imediato para o os olhos enfaixados de Meslor com uma animosidade que pouco lhe agradou. Rodando o cajado de modo a que a serpente fixasse o olhar do drugrak, Meslor observou com interesse a forma como a sua expressão se transfigurava em puro horror. Quando o drugrak caiu de joelhos no chão, Meslor quase conseguia dizer que a sua negra pele tinha embranquecido. Avançando pela enlameada estrada que era apenas um pouco mais sólida que a dos pântanos, Meslor começou a procurar sinais do tempo que estivera fora. A casas e tendas que se espalhavam pela cidade exterior eram diferentes das que Meslor se recordava, mas mesmo no seu tempo estas duravam pouco mais que alguns meses. A desarrumação que o rodeava era a mesma que daqueles tempos, o que apenas significava que os drugraks continuavam tão irracionais como se recordava. Nunca nos dez anos que estivera no trono de Grur-Rak conseguira trazer o mínimo de organização ao caos que guardava a cidadela, e não fosse pela sua importância há muito teria expulsado todos os que ali se amontoavam. Mas naquelas barracas viviam três quartos da força militar de Grur-Rak, um número demasiado grande para Meslor eliminar pacificamente e suficientemente grande para tolerar as suas condições. Baixando-se de modo a poder passar pela pequena porta, Meslor passou pelo horrorizado drugrak com um longo sorriso e com os olhos postos no caminho que crescia à sua frente. O portão pelo qual passava agora era apenas a entrada da muralha exterior, sendo que a verdadeira cidade apenas começava a mais de quinhentos passos, subindo pelo enorme rochedo que a sustentava. Pelo meio crescia um caótico amontoado de tendas e precárias barracas onde todos os drugraks que não tinham lugar na cidade se propagavam. Um antro de violência em constante guerra onde todos os dias dezenas perdiam as suas vidas, um lugar onde apenas os mais fortes podiam sobreviver e onde ninguém estava a salvo. Os que conseguiam sobreviver tempo suficiente podiam ter a sorte de ganhar um lugar na cidade, onde a rígida disciplina do exército refreava a agressividade dos drugraks. Pelo menos assim era no tempo em que Meslor governara. Há quinze anos… Com uma inesperada violência a pequena porta de ferro negro foi puxada do portão que a continha, emitindo um curto guincho sobre as dobradiças. Atrás da porta Meslor descobriu o guarda drugrak ajoelhado e dobrado de modo a que os seus olhos se escondessem entre os joelhos, abanando-se lentamente ao sabor das lágrimas que tentava conter. O medo que o invadia levava-o a ignorar tudo o que o rodeava, a ignorar a poça lamacenta onde lavava a sua ferrugenta armadura, e a ignorar o inquestionável orgulho que todos os drugraks tinham. Essa era talvez a mais deliciosa característica do seu poder. Para além de roubar toda a dignidade que alguém pudesse ter, Meslor conseguia também roubar o seu espírito. A pequena chave de ferro chamou Meslor dos seus pensamentos à medida que tremia o seu caminho pela fechadura. O nervosismo que as trémulas mãos do drugrak carregavam lembrou Meslor que o seu poder ainda tinha as suas utilidades, principalmente naquela cidade. Nenhum drugrak conseguia resistir ao seu poder por muito tempo, e os que não caíam de imediato no chão em lágrimas pouco mais conseguiam fazer que pronunciar imperceptíveis frases. Havia alguns que conseguiam resistir por completo, para grande irritação de Meslor, mas esses haviam sido há muito removidos do seu caminho. Mas mesmo esse poder tinha os seus limites. Meslor apenas conseguia embutir medo nas almas daqueles com corações fracos, daqueles que duvidavam da sua coragem e de si mesmos. Uma pena…, pensou Meslor mais uma vez, Poderia ter o mundo todo a meus pés… Do outro lado do portão Meslor conseguia ouvir o drugrak a rastejar na lama enquanto tentava encontrar a chave que abria a porta, conseguia ouvir os tremores que o impediam de conseguir segurar uma por muito tempo. O medo que enchia os seus olhos de lágrimas pouco tinha a ver com a forma como Meslor reinara, mas sim com a maior arma que o seu mestre lhe havia concedido. Medo. O poder de espalhar o mais profundo e insuportável medo, de vergar todos debaixo dessa imbatível força, de vencer todos os que o desafiavam sem sequer ter de mexer um dedo. Meslor governara a cidade do pântano com uma mão pesada, penalizando o mais pequeno erro com a mais terrível pena e impondo uma inquestionável obediência. Essa era a única forma de forçar os drugraks a seguirem as suas ordens, mas não fora em nome da ordem que Meslor optara por governar através de terror. Ordem era importante e essencial para os planos que o seu mestre tinha para Grur-Rak, mas o que Meslor realmente queria era sentir-se temido e respeitado. E isso era algo que sempre conseguira impor nos drugraks, mesmo antes de ascender ao trono de Grur-Rak. Um estrondo do outro lado do portão pontuou o final do discurso de Meslor trazendo-lhe ainda mais prazer. O drugrak do outro lado da porta estaria a rebolar na lama de horror em agonia, assombrado pelo mais terrível medo que um ser vivo poderia sentir. E isso não se devia apenas ao seu poder em Grur-Rak. – Eu sou Meslor. Senhor de Grur-Rak e de todos os que habitam dentro das suas muralhas. – Um sorriso desenhou-se em Meslor ao ver o rosto do drugrak a congelar de terror com cada palavra. – Após quinze longos anos ao serviço do nosso grande senhor, regressei para retomar o meu trono. Movendo rapidamente o cajado de forma a que este ficasse ao nível da pequena abertura no portão, fitou os dois assustados olhos do guarda drugrak. O frio olhar da víbora fixou os escarlates olhos sobre um fundo negro do drugrak, e este deu um instintivo passo atrás como se temesse que estes o pudessem matar. E bem o podia temer. O medo que se começava a propagar pelo drugrak devia-se a muito mais do que o olhar da serpente. – Quem é?! Pesados e preguiçosos passos do outro lado do portão trouxeram um sorriso aos lábios de Meslor. Um violento silvo arrastou uma pequena portinhola no centro da porta, um pouco abaixo do peito de Meslor, e uma áspera voz rugiu do outro lado da porta Dragvur, a primitiva língua dos drugraks: Agarrando numa larga argola negra Meslor empurrou a esfera na sua base contra o portão produzindo três estridentes pancadas. Ouvindo a vibração das pancadas a desvanecer lentamente, Meslor tentou discernir qualquer outro som do outro lado do portão. Era suposto estar um guarda junto ao portão, mas isso não significava que estivesse dado que também era suposto estarem quatro guardas nas muralhas. Se não estivesse um guarda no portão Meslor poderia ser forçado a recorrer a métodos menos subtis na cidade, e isso estragaria o seu retorno. Mesmo que isso causasse um impacto muito maior. Aproximando-se do espesso portão negro com mais de cinco metros de altura e quatro de largura, Meslor procurou os drugraks que estariam a guardar no topo da muralha. Inclinando o cajado de forma a puder observar o topo da irregular muralha, varreu-a num curto gesto apenas para descobrir que não havia nenhum ser vivo nesta. Do outro lado da muralha podia ouvir-se o zumbido da cidade, a cacofonia de sons de milhares de drugraks que muito provavelmente se estariam a tentar matar uns aos outros. E enquanto o faziam tinham simplesmente deixado as portas abertas aos seus inimigos. Meslor suspirou fundo ao perceber que muito teria mudado nos quinze anos que estivera fora. Por detrás de um sinuoso arbusto com triangulares folhas com uma cor negra, Meslor avistou ao longe as cinzentas muralhas de Grur-Rak. A sua irregular estrutura parecia sempre prestes a cair e trazia pouca confiança a quem as defendia, mas na realidade eram muito mais resistentes do que pareciam. O seu aspecto tosto e desleixado era na realidade o melhor trabalho que os drugraks conseguiam fazer, e fora só graças a muito esforço por parte do seu mestre que estas haviam conseguido ser erguidas de forma a que não voltassem a cair. E desde esse tempo nunca mais o fizeram. Como fiel e dedicado servo do senhor de Dur-Sindoch, uma das várias recompensas que Meslor recebera fora a cidade de Grur-Rak. O seu mestre era generoso se bem que exigente, mas Meslor sempre vira as suas exigências como uma hipótese de mostrar a sua dedicação e determinação. Graças a isso o comando da cidade do pântano e do seu exército haviam sido atribuídas a si, e mesmo que este fosse um local do mundo que poucos desejassem sequer ver, Meslor aprendera a vê-lo como a sua casa. Durante os dez anos em que reinara em Grur-Rak antes de ser enviado para vigiar o Dorthul, Meslor vergara os drugraks à sua vontade e trouxera ordem à sua tumultuosa sociedade. Ordem dentro daquilo que era possível. Os drugraks compreendiam tanto o seu significado como uma águia sabia nadar. Galgando por mais um tronco apodrecido pelas águas do pântano, Meslor ergueu o cajado para o caminho que se abria à sua frente. Pelos reptilários olhos amarelos da serpente reparou com agrado que a estrada subia por terra seca, o que significava que Grur-Rak estava já a poucas dezenas de metros. A cidade tinha sido construída no único local sólido do pântano, sobre um pequeno monte que assentava sobre um massivo rochedo. O seu compacto sólido permitira a construção das sólidas casas da cidade ao mesmo tempo que as protegia das águas dos pântanos, mesmo quando estas subiam com as cheias de Inverno. Grur-Rak era um pequeno pedaço de civilização no meio do mais selvagem meio de Keruvien, e era com agrado que Meslor lhe chamava o seu pedaço de civilização. A razão porque Meslor se preocupava com a passagem do dia devia-se ao tempo que tinha demorado a chegar até ali. Tinha partido há já duas semanas da prisão do Dorthul e já há duas semanas tinha enviado a mensagem a seu mestre, o que significava que por agora já ele estaria à sua espera. Na sua precipitação Meslor ordenara ao soldado nórdico que não parasse por nada até entregar a mensagem, e isso muito provavelmente significava que este não tinha sequer parado para comer ou dormir. Seria um milagre se ele tivesse chegado com vida até ao seu destino, mas era demasiado tarde para pensar nisso. Meslor apenas tinha de chegar depressa a Grur-Rak e esperar que tudo tivesse corrido pelo melhor. Erguendo o olhar para o céu recortado por árvores mortas por cima de si, Meslor tentou determinar que horas seriam. Era difícil ter uma real percepção do tempo nos pântanos, e os gases que pairavam pela sua atmosfera tornavam praticamente impossível traçar o percurso do sol. Isso era um problema que ganhava gravidade quando a noite chegava num estalar de dedos, e em poucos minutos a pouca luz que banhava os pântanos podia tornar-se na mais densa escuridão. E à noite, o pântano ganhava uma vida completamente diferente, tornando-se cem vezes mais imperceptível e mil vezes mais mortífero. Meslor, no entanto, sabia que nenhum ser ousaria pousar mais que os seus olhos em si. A cidade do pântano tinha sido construída pelo seu mestre há séculos atrás como promessa aos drugraks em troca da sua eterna aliança. Os ignorantes seres nem sequer se aperceberam de que esta apenas fora construída para os manter debaixo de olho e para que pudessem ser usados sempre que fosse preciso, mas na realidade isso não os parecia perturbar muito. Os drugraks viviam para lutar, para destruir e matar, e o melhor que lhes podiam oferecer era uma vida de batalha e morte, mesmo que isso lhes custasse as suas. O seu mestre sempre lhes oferecera muitas oportunidades para morrer num campo de batalha, e para confusão de Meslor isso sempre os animara mais do que qualquer outra coisa. Pelas copas das esqueléticas árvores que se debruçavam sobre a enlameada estrada Meslor descobriu três torres negras desenhadas sobre o alaranjado céu. Grur-Rak! Finalmente!, suspirou de olhos postos nas três cónicas torres de pedra negra. A cidade de Grur-Rak era a única cidade de Gurudar, apesar de ser mais exacto dizer que era a única zona habitável nos pântanos. Era possível encontrar pequenas tribos ou aglomerados de seres ao longo do pântano, mas a existência destes estava dependente da vontade das águas dos três rios. Poucas eram as coisas que duravam muito tempo em Gurudar, tudo estava destinado a morrer mais tarde ou mais cedo e as suas cidades não eram excepção. A única era mesmo Grur-Rak. De todos os seres que habitavam os pântanos, os mais conhecidos eram os drugraks. A sua fome de violência e de sangue permitia-lhes prosperar pelos inóspitos pântanos, e o seu curioso companheirismo permitia-lhes subjugar qualquer outra espécie. Um drugrak daria a sua vida para salvar um homólogo, mas muitas das vezes apenas o fazia para poder ser ele a matá-lo. Eram criaturas selvagens e irracionais sem o mínimo tipo de organização, mas que através dos seus números e coragem quase suicida conseguiam sobreviver às mais improváveis situações. Meslor nunca os suportara, mas tinha de concordar que tinham as suas utilidades. Há dois dias que a viagem de Meslor prosseguia a pé pelos pântanos Gurudar, tendo o seu fiel cavalo decidido fugir da negra aura que estes abrigavam. Meslor não o podia culpar (apesar de o ter amaldiçoado uma dezena de vezes apenas naquela manhã) pois poucos eram os seres que conseguiam tolerar a nociva atmosfera de Gurudar. Os pântanos resultavam da acumulação das águas do Lagun, do Wornul e do Gurud na planície de Gurudar, onde se misturavam com a densa vegetação e com o pobre solo e estagnavam. As peculiares propriedades dos pântanos Gurudar permitiam que neles habitassem seres que não podiam ser encontrados em mais nenhum lugar, e não apenas porque eles preferissem este lugar, mas principalmente porque não poderiam sobreviver durante muito tempo noutro. Os seus corações eram tão negros como a noite no pântano e a única coisa para a qual viviam era para matar ou ser mortos. E essa era a lei de Gurudar. O enlameado e peganhento solo dificultava o avanço das pesadas botas de couro, ainda mais pesadas pelos quilos de lama que traziam agarradas. O solo encharcado cedia à mínima pressão e mesmo com a ajuda do longo cajado a caminhada era lenta e torturante, principalmente quando se passava o dobro do tempo a sair do mesmo lugar do que a dar um passo. O ar era pesado e sufocante, inundado pela densa humidade e por pestilentos gases que arranhavam as narinas e a garganta, enquanto estes se procuravam por oxigénio. Este era escasso naquele local, mas isso não era um grande problema. Morte pairava pela atmosfera, e poucos eram os que ainda tinham o luxo de poder respirar.
– Olá Rashnak, – Murmurou o vulto numa serena voz que lhe trouxe gelados arrepios às costas cobertas de suor. – estou aqui para te libertar. Baixando lentamente os braços tentou abrir os olhos para a intensa luz que iluminava a cela. Erguendo lentamente os olhos, vermelho o esquerdo e azul o direito, distinguiu junto à porta dois vultos. Um deles segurava a tocha que queimava os seus olhos, e o outro segurava um longo cajado que lhe pareceu estranhamente familiar. Esse mesmo cajado avançou para o interior da cela, e no seu topo dois olhos amarelos quebraram a escuridão da cela. O áspero guincho da porta de metal acompanhou-a enquanto esta desenhava um circulo que ocupava metade da cela. A luz tornou-se insuportável e os seus braços fecharam-se sobre os seus sensíveis olhos agitando as correntes que os prendiam à parede. Aquelas algemas pareciam já fazer parte dos seus braços e os seus punhos há muito que tinham aprendido a aceitar o seu peso e o seu limite. Conhecia cada centímetro da corrente que o prendia, e sabia exactamente como podia mexer os braços sem que estas o impedissem. Deuses! Quanto tempo teria passado para que aceitasse já as algemas como parte de si! Do lado esquerdo um fino fio dourado quebrou a escuridão da minúscula cela. Embora fosse apenas a pequena tocha do guarda o seu brilho era tão forte como o do sol, e os seus olhos esconderam-se instintivamente debaixo dos longos cabelos. Quando tinha sido a última vez que o guarda tinha vindo? Teria já passado outro dia desde a última vez? Até podiam ter passados meses desde a última visita. A sua mente estava demasiado cansada para pensar nisso ou se importar. As escorregadias paredes ensopavam os trapos que cobriam as suas costas, ao mesmo tempo que o suor colava os seus longos cabelo ao pescoço. O calor e a humidade eram insuportáveis, principalmente num espaço tão pequeno e em absoluta escuridão. Como habitualmente a sua mente vagueava por estranhas ilusões, por fantasias que não faziam o mínimo sentido e que apenas serviam para lhe recordar que há muito tempo perdera a sua sanidade. Quanto tempo tinha passado? Mergulhado na escuridão e no silêncio, as horas misturavam-se com os dias e os dias com os meses, até ao ponto em que o tempo perde todo o seu sentido. Não fossem pelas diárias visitas dos guardas com comida e com o balde para os dejectos, era como se tivesse morto.
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